Sunday, February 2, 2014

Capítulo 1 - Imitação


E no escuro de um quarto mínimo a chama de uma única vela dança e cria imagens míticas em uma parede velha e suja. A firme mão conduz a vela e sua luz para mais perto das anotações que vem escrevendo desde a infância. O dono das anotações se interessa por ler e reler cada passagem com um prazer quase infantil, o mesmo que é repetir compulsivamente a mesma brincadeira sem cansar-se. Porém, cada nova leitura era uma nova visão, um novo deleite sobre um mal feito. Cada palavra lida e falada em voz miúda soava como um sussurro carinhoso ao ouvido do ente amado. Cada palavra fazia com que o seu fervoroso leitor desejasse mais novidades ali, entre as sombras, escrever. De tanto ler, ele já sabia de cor cada trecho, cada linha, cada vírgula escrita com seu próprio sangue em conjunto com o sangue de muitos outros. Não compreendia a fome que o levava a fazer aquilo, mas sabia que tinha que continuar a alimenta-la com letras, mais palavras, mais mal feitos. Sua obra em seus olhos era a mais pura poesia, porém longe de estar completa. Ao terminar de ler as últimas e mais recentes linhas, ainda avermelhadas pelo sangue fresco, ficou em silêncio. O único som era o do seu próprio coração bombeando o sangue, sua tinta através do seu ser. Ele sentia cada vaso dilatar, espalhar a vida pelo seu corpo morto em alma. Permaneceu entorpecido por horas, suas companhias eram apenas os sons da sua respiração e das batidas do seu coração. No parede, imagens formadas pela bruxuleante chama da vela quase extinta sobre a mesa.

***

Seis horas da tarde e o sino da igreja chama para a missa todos os que acreditam em Deus e mais aqueles outros preocupados apenas em salvar suas almas case Ele realmente exista.  O povaréu se avistado do alto pareciam formigas rumando enfileiradas rumo à matriz. Seguiam com suas melhores roupas, com suas melhores caras e, em suas cabeças, cheios das melhores intenções. Entre eles, seguia a romaria das beatas com seus cânticos de amor à Virgem, orações e o som da batida dos saltos de seus sapatos gastos contra o paralelepípedo do caminho. Por detrás de seus clamores de devoção e transe apostólico, seguiam pensando apenas na vida alheia. Com seus olhos mediam e julgavam aqueles quem em seus preceitos não eram iguais a elas, merecedoras do amor divino e do reino celeste. Impolutas em suas roupas negras coordenavam a vida de todos na cidade. Viviam em suas cabeças uma guerra santa, acreditavam fazer parte de uma cruzada e instituíram sua própria inquisição. Ao fundo do cortejo negro seguia uma única mulher. A solitária senhora carregava nas costas o peso dos seus 86 anos de vida e caminhava com passos firmes e comedida distância das inquisidoras  ruma à igreja. Ruma à casa do Senhor.

Como sempre todos adentraram à igreja, exceto a solitária senhora que se ajoelhou no pórtico e abaixou a cabeça em sinal de reverência. Em seguida, levantou os olhos em direção à imagem da Virgem que trazia no colo o Filho morto. Sua cara se encheu de devoção, porém ao cruzar a face do jovem padre notou-se nitidamente o findar da fé e sua cara enrugada transfigurar-se em dor. Apertando fortemente o rosário entre suas mãos, levantou-se e seguiu rumo ao lar. Em sua casa, foi direto para cama estreita exausta. Cansada pela batalha travada, desmaiou e feito uma pedra permaneceu até o dia seguinte.

Na igreja, todos já haviam se cansado de comentar sobre o ocorrido, era notícia velha. Para todos a velha havia caducado e, por isso, não causava nenhum espanto o seu comportamento de louca. Encaravam o acontecido como algo que sempre existiu. Esqueciam que o início de tudo estava relacionado com a chegada do jovem padre. Fim da missa significava o fim do domingo.  As formigas em cochichos sumiam na noite e seguiam o caminho de volta para suas casas.

No dia seguinte, a solitária velha levanta cedo e começa a sua lida. Faz o café, assa o pão e prepara a mesa. Alimenta a família, ajuda os filhos, acarinha os netos e pensava no futuro deles. Essa era a rotina, seu moto-contínuo que lhe foi herança da mãe, que recebeu da sua avó e que antes delas foi rotina de todas as mulheres que formavam o tronco da grande árvore que era a sua família. Mulher forte, nunca reclamou. Sempre aceitou. Aceitou o casamento arranjado, não ter podido estudar, as amantes do marido, os desatinos dos filhos, as fraquezas dos netos e a solidão. Sempre forte e acolhedora, a velha mulher não sonhava mais. Sonhos deve ter os tido enquanto criança, mas acabaram cedo logo após o casamento. Ela com 14, ele com 25. Mesmo murcha pelos anos era possível ver o quanto havia sido bela. As fotos espalhadas pelas paredes, mesmo descoloridas como a própria dona,  eram a prova do viço de outrora. Da mulher das fotos restou apenas o olhar triste, o mesmo olhar de uma menina que chora por sua boneca quebrada.

A velha senhora não era dado ao descanso, mas naquela tarde tirou um cochilo e teve um sonho. Seu corpo velho lhe pregava peças e ao sentar-se corria o risco de cochilar e assim o foi. Acordou desorientada e de rompante foi direto à igreja ter com o padre.

        __ Desculpe entrar deste jeito senhor padre, mas tenho que falar com o senhor.

O jovem padre ao ver a velha em sua frente com voz de admiração respondeu:

__ Por Deus, nosso senhor, isto é um milagre! O bom filho à casa torna. Deus lhe abençoe minha filha e é um prazer pela primeira vez recebe-la nesta casa de orações.

Rispidamente e em tom grave a velha respondeu:

__ Padre, não quero iniciar uma amizade.

Aproveitou e encaixou uma pergunta:

__ Só gostaria de perguntar onde nasceu?

Sorrindo como um anjo, o belo padre aponta uma cadeira para a mulher e diz:

__ Isto só lhe responde se antes responder um pergunta minha. Como pastor deste rebanho gostaria de saber o motivo pelo qual tão boa alma nunca fez parte da minha missa?

A velha não respondeu. Continuou calada, pois nunca soube ao certo o real motivo pelo qual nunca mais assistiu uma missa ou mesmo entrou na igreja depois da chegada do novo padre. O seu coração só dizia que ela não pertencia mais naquele local e em prantos respondeu:

__ Eu não sei!


Sem responder sua pergunta, o padre então a abraçou e ternamente beijou sua testa. Este havia sido o gesto mais carinhoso que qualquer ser humano lhe havia dado durante a sua vida inteira. Este foi o beijo que o marido nunca lhe deu, os abraços que os filhos negaram e atenção que os netos nunca perceberam que ela precisava.

No comments:

Post a Comment