Monday, February 3, 2014

Capítulo 2 - Redenção


Deitado no chão daquele cômodo secreto e escuro, parecia um amontoado de trouxas. Com o passar do tempo e com os olhos acostumados com a penumbra era possível delinear os traços de um corpo humano. Estava nu e imóvel. Morto? Neste momento, um suspiro profundo era o único sinal de que aquele amontoado de carne ainda estava vivo. Morto apenas em alma. O seu vazio era tal qual um membro extirpado que costuma incomodar com coceiras e dores fantasmas. O monstro apesar de imóvel estava  imaginando sua obra. Repassando seus passos. De súbito, uma das lembranças lhe atiçou os sentidos. Um misto de tensão e prazer percorreram o seu corpo. A criatura contorceu-se. Dedos, pernas, músculos da face, abdômen e genitália. Tudo parecia inchar, aumentar de volume, mostrar que estava vivo. A convulsão acabou em orgasmo que lhe sujou o corpo suado com o quente e grosso esperma. Então, mais uma vez aquietou-se. O corpo sem alma voltou a contrair-se e descansar no chão frio.


***

O jovem padre, com um tom de conquistador, pregava para o seu rebanho.

__ Eu vi os sete anjos que assistem diante de Deus. Foram-lhes dadas sete trombetas ...

Desta vez o sermão tinha um gosto diferente para o pároco, pois na primeira fila estava a velha – antes louca – com os olhos vidrados em seu novo salvador. Todos na igreja estavam surpresos com o retorno da anciã. Comentavam o milagre que padre havia feito ao reconquistar a sanidade da velha. Porém, como era de costume naquela cidade, logo o povo perdeu o interesse e o encanto da novidade passou. Todos esqueceram o passado recente como se a velha nunca tivesse abandonando a sua posição na primeira fila cantando fervorosamente aos céus.

Nesta mesma missa, no fundo da igreja e em pé encontrava-se uma outra mulher. Esta por sua vez jovem. Era uma mulher humilde como tantas outras que infestavam o lado pobre da cidade. Estava com seu melhor vestido que tinha a cor azul-claro, o qual realçava a sua pele morena. Notava-se a barra rota e algumas manchas e furos, presentes do tempo e das longas caminhadas pelo campo até a cidade. Nos pés duros e rachados sandálias que eram presentes de alguma “boa” alma que notou que aquelas velhas sandálias vermelhas não lhe fazia mais serventia, estavam fora de moda. Nos braços, fortes pelo eito da lavoura, trazia um rebento a procurar-lhe o peito. Na barra do vestido, além das manchas e furos, mais seis meninos de nariz escorrendo rodeavam a jovem Com as caras sujas, os barrigudinhos formavam uma escada em volta da mãe.

Atenta a moça olhava o belo padre e não entendia nada sobre o que ele falava, mas compreendia pela atenção do povo que aquelas palavras bonitas e tão complicadas, apesar de sem sentido para ela, deveriam ser algo importante. Manteve-se ereta e fervorosa sem tirar os olhos do padre. Vidrada. As vezes dava puxões nos meninos para que estes ficassem quietos e respeitosos diante de Deus e daquele anjo que ali pregava pela salvação de suas almas. Não era só a pobre e jovem mãe que notava a beleza do padre. As mulheres suspiravam e não perdiam um culto. A fé tinha arrumado uma grande aliada para encher a igreja na beleza do moço. Até os homens, apesar de velada admiração, não conseguiam deixar de olhar para a sua figura imponente que do altar fazia seu palco. Além da beleza, existia também a eloquência do moço acompanhada da sua bela voz que ganhava força pela ótima acústica da nave central da igreja.

A jovem mãe de sete meninos esperou o fim da missa para ter com o seu anjo. Estava nervosa e envergonhada de dirigir a palavra à uma pessoa tão importante e acima de tudo tão bela. Tinha que conseguir forças e enfrentar seus receios, pois a criança precisava ser batizada, não podia continuar pagão. Então, enfrentou o medo e com a boca seca caminhou até o altar. Cada passo lhe queimava a carne, cada metro lhe esquentava o corpo. Um calor lhe subia as pernas. Ao chegar próximo ao anjo de formosura disse:

__ Belo sermão o seu, senhor seu Padre.

A voz fraca parecia engolir palavras em vez de solta-las. O padre quase não a escutou, mas voltou-lhe a face com um sorriso largo e olhos compreensivos. Sorrindo com ar de perdão perguntou:

__ Apesar de belo, não foi ao altar receber a eucaristia minha filha.

Envergonhada e com a voz menor ainda a jovem mãe respondeu:

__ São os meninos Santo Padre. Fica difícil andar com todos os sete até o altar. Além do mais, já faz algum tempo que não me confesso. O menor nem era nascido. Não me senti digna de receber o Corpo de Cristo. Perdão, meu santinho.

No fundo a verdade era bem outra. A moça estava mesmo era com vergonha de receber a hóstia das mãos alvas do padre. Vergonha de abrir a boca diante daquele anjo.  O motivo não era por vergonha dos dentes, pois eram brancos feito leito. Nunca teve uma cárie, tinha orgulho de muito limpa e cresceu sabendo que ser pobre não era sinal de sujeira. Porém, achava estranho imaginar sua boca aberta recebendo o Corpo Consagrado das mãos do padre que de tão bonitas lhe davam vontade de comer, possuir.

__ Queres confessar-te então? Como estamos na quaresma, costumo receber os fiéis em confissão durante o dia todos as sextas-feiras. Sem exceção.

A voz do padre desta vez era firme, denotando um ar de preocupação, mas não perdeu o sorriso largo. Sua marca registrada e a razão de casa cheia as sextas. 

___ Santo Padre, não é só da minha confissão que vim tratar. Preciso também batizar o menino. Meu sétimo filho ainda é pagão.

Desta vez a voz saiu por completo, sem receios. Com orgulho, a moça mostrou a o menino que dormia em seus braços ao padre. A conversa seguiu tranquila e a data marcada. Restava apenas confirmar os detalhes com a beata encarregada do curso batismal.  A mãe saiu da igreja arrastando os filhos sorrindo como se tivesse ganhado na loteria. Não via a hora de chegar em casa e contar ao marido as novidades.

Logo na saída encontrou a beata, a qual sem dar muita atenção informou que curso seria de três dias. A moça assustou-se, nenhum dois outros meninos precisou de tantas horas para serem batizados. Com esse mundaréu de horas sabia que seria impossível o frequentar até o final. Implorou para a dura beata uma solução. Explicou sua condição e a situação dos padrinhos e marido. Todos pobres, porém muito trabalhadores e gente honesta. Era só perguntar nas ruas, qualquer um poderia confirmar. Com o dinheiro curto e tantas bocas para alimentar, não poderiam perder tantos dias de trabalho. Sem saída a beata fazendo cara de santa concedendo uma graça aceitou as súplicas da jovem mãe e, com desdém, marcou a data para um curso relâmpago na seguinte sexta-feira logo após a confissão de todos. A beata deu a notícia em voz alta fingindo compreensão e simulando um ato de caridade cristã perante as senhoras que a rodeavam nas escadarias da Matriz. No fundo, era tudo teatro. Sua aceitação sem discussão na verdade não passava de falta de interesse para com a pobre mãe e sua prole de barrigudinhos. A beata não queria era perder tempo com aqueles pobres coitados que estavam no mundo só para servir. Na visão íntima dela, eles já eram condenados ao inferno e por isso nasceram pobres. Com tudo resolvido era hora de rumar para casa e caminhar as longas léguas até lá.
No caminho, as crianças ouviram ao sorveteiro com seu carrinho todo colorido e sua buzina aguda chamando a criançada para se refrescar naquele dia quente. Os seis meninos ficaram loucos com ideia de provarem pela primeira vez um picolé. O dia era de felicidade, pois tudo havia dado certo. A mãe contou as poucas moedas e sabia que, apesar do pouco valor, iriam fazer falta numa precisão. Então, decidiu-se por comprar apenas um picolé. Um seria suficiente para agradar os filhos. Além do mais, todos mereciam comemorar. Optou com comprar o picolé de groselha. Ela não sabia o que era, mas o nome era tão diferente e cor de sangue tão intensa que só poderia ser gostoso.

__ Para a bela senhorinha um sorvete de groselha. Para as crianças quais os sabores?

O homem magro, quase amarelo, entregou-lhe o sorvete com a mão de dedos finos e longos marcados a nicotina. Timidamente a mãe respondeu sorrindo que o sorvete era para os meninos e que o dinheiro que tinha quase não dava para um. O sorveteiro olhando para o decote da bela morena que amamentava o filho pequeno, fez com que ele imaginasse a si mesmo no lugar do infante a mamar aquele seio grande e inchado de leite. Imaginou-se mordendo o bico entumecido e róseo da mulher. Quase sem tirar os olhos dos seios e disfarçando a ereção, retirou mais seis picolés e entregou as crianças. Com a mão boba acariciou a cabeça da criança de colo, maliciosamente tocou os seios de resvalo sem deixar a jovem mãe notar. Essa, agradeceu e seguiu rumo a sua casa com a certeza que aquele dia realmente ero o seu dia de sorte. Apenas anjos cruzaram o seu caminho, o padre, a beata e o sorveteiro.

Sunday, February 2, 2014

Capítulo 1 - Imitação


E no escuro de um quarto mínimo a chama de uma única vela dança e cria imagens míticas em uma parede velha e suja. A firme mão conduz a vela e sua luz para mais perto das anotações que vem escrevendo desde a infância. O dono das anotações se interessa por ler e reler cada passagem com um prazer quase infantil, o mesmo que é repetir compulsivamente a mesma brincadeira sem cansar-se. Porém, cada nova leitura era uma nova visão, um novo deleite sobre um mal feito. Cada palavra lida e falada em voz miúda soava como um sussurro carinhoso ao ouvido do ente amado. Cada palavra fazia com que o seu fervoroso leitor desejasse mais novidades ali, entre as sombras, escrever. De tanto ler, ele já sabia de cor cada trecho, cada linha, cada vírgula escrita com seu próprio sangue em conjunto com o sangue de muitos outros. Não compreendia a fome que o levava a fazer aquilo, mas sabia que tinha que continuar a alimenta-la com letras, mais palavras, mais mal feitos. Sua obra em seus olhos era a mais pura poesia, porém longe de estar completa. Ao terminar de ler as últimas e mais recentes linhas, ainda avermelhadas pelo sangue fresco, ficou em silêncio. O único som era o do seu próprio coração bombeando o sangue, sua tinta através do seu ser. Ele sentia cada vaso dilatar, espalhar a vida pelo seu corpo morto em alma. Permaneceu entorpecido por horas, suas companhias eram apenas os sons da sua respiração e das batidas do seu coração. No parede, imagens formadas pela bruxuleante chama da vela quase extinta sobre a mesa.

***

Seis horas da tarde e o sino da igreja chama para a missa todos os que acreditam em Deus e mais aqueles outros preocupados apenas em salvar suas almas case Ele realmente exista.  O povaréu se avistado do alto pareciam formigas rumando enfileiradas rumo à matriz. Seguiam com suas melhores roupas, com suas melhores caras e, em suas cabeças, cheios das melhores intenções. Entre eles, seguia a romaria das beatas com seus cânticos de amor à Virgem, orações e o som da batida dos saltos de seus sapatos gastos contra o paralelepípedo do caminho. Por detrás de seus clamores de devoção e transe apostólico, seguiam pensando apenas na vida alheia. Com seus olhos mediam e julgavam aqueles quem em seus preceitos não eram iguais a elas, merecedoras do amor divino e do reino celeste. Impolutas em suas roupas negras coordenavam a vida de todos na cidade. Viviam em suas cabeças uma guerra santa, acreditavam fazer parte de uma cruzada e instituíram sua própria inquisição. Ao fundo do cortejo negro seguia uma única mulher. A solitária senhora carregava nas costas o peso dos seus 86 anos de vida e caminhava com passos firmes e comedida distância das inquisidoras  ruma à igreja. Ruma à casa do Senhor.

Como sempre todos adentraram à igreja, exceto a solitária senhora que se ajoelhou no pórtico e abaixou a cabeça em sinal de reverência. Em seguida, levantou os olhos em direção à imagem da Virgem que trazia no colo o Filho morto. Sua cara se encheu de devoção, porém ao cruzar a face do jovem padre notou-se nitidamente o findar da fé e sua cara enrugada transfigurar-se em dor. Apertando fortemente o rosário entre suas mãos, levantou-se e seguiu rumo ao lar. Em sua casa, foi direto para cama estreita exausta. Cansada pela batalha travada, desmaiou e feito uma pedra permaneceu até o dia seguinte.

Na igreja, todos já haviam se cansado de comentar sobre o ocorrido, era notícia velha. Para todos a velha havia caducado e, por isso, não causava nenhum espanto o seu comportamento de louca. Encaravam o acontecido como algo que sempre existiu. Esqueciam que o início de tudo estava relacionado com a chegada do jovem padre. Fim da missa significava o fim do domingo.  As formigas em cochichos sumiam na noite e seguiam o caminho de volta para suas casas.

No dia seguinte, a solitária velha levanta cedo e começa a sua lida. Faz o café, assa o pão e prepara a mesa. Alimenta a família, ajuda os filhos, acarinha os netos e pensava no futuro deles. Essa era a rotina, seu moto-contínuo que lhe foi herança da mãe, que recebeu da sua avó e que antes delas foi rotina de todas as mulheres que formavam o tronco da grande árvore que era a sua família. Mulher forte, nunca reclamou. Sempre aceitou. Aceitou o casamento arranjado, não ter podido estudar, as amantes do marido, os desatinos dos filhos, as fraquezas dos netos e a solidão. Sempre forte e acolhedora, a velha mulher não sonhava mais. Sonhos deve ter os tido enquanto criança, mas acabaram cedo logo após o casamento. Ela com 14, ele com 25. Mesmo murcha pelos anos era possível ver o quanto havia sido bela. As fotos espalhadas pelas paredes, mesmo descoloridas como a própria dona,  eram a prova do viço de outrora. Da mulher das fotos restou apenas o olhar triste, o mesmo olhar de uma menina que chora por sua boneca quebrada.

A velha senhora não era dado ao descanso, mas naquela tarde tirou um cochilo e teve um sonho. Seu corpo velho lhe pregava peças e ao sentar-se corria o risco de cochilar e assim o foi. Acordou desorientada e de rompante foi direto à igreja ter com o padre.

        __ Desculpe entrar deste jeito senhor padre, mas tenho que falar com o senhor.

O jovem padre ao ver a velha em sua frente com voz de admiração respondeu:

__ Por Deus, nosso senhor, isto é um milagre! O bom filho à casa torna. Deus lhe abençoe minha filha e é um prazer pela primeira vez recebe-la nesta casa de orações.

Rispidamente e em tom grave a velha respondeu:

__ Padre, não quero iniciar uma amizade.

Aproveitou e encaixou uma pergunta:

__ Só gostaria de perguntar onde nasceu?

Sorrindo como um anjo, o belo padre aponta uma cadeira para a mulher e diz:

__ Isto só lhe responde se antes responder um pergunta minha. Como pastor deste rebanho gostaria de saber o motivo pelo qual tão boa alma nunca fez parte da minha missa?

A velha não respondeu. Continuou calada, pois nunca soube ao certo o real motivo pelo qual nunca mais assistiu uma missa ou mesmo entrou na igreja depois da chegada do novo padre. O seu coração só dizia que ela não pertencia mais naquele local e em prantos respondeu:

__ Eu não sei!


Sem responder sua pergunta, o padre então a abraçou e ternamente beijou sua testa. Este havia sido o gesto mais carinhoso que qualquer ser humano lhe havia dado durante a sua vida inteira. Este foi o beijo que o marido nunca lhe deu, os abraços que os filhos negaram e atenção que os netos nunca perceberam que ela precisava.